Nascemos e desde cedo somos ensinadas que nosso corpo de mulher é defeituoso e problemático. 

Quando crianças aprendemos que devemos nos comportar como mocinhas, temos que ter cuidado com nosso corpo e não mostrar certas partes. Como crianças meninas é esperado de nós que tenhamos um comportamento menos expansivo, mais silencioso, mais “educado”. Não entendemos porque existe um tabu tão grande com nossa nudez enquanto nossos amiguinhos meninos tem mais liberdade de andar livremente. 

Quando crescemos mais um pouco passamos à fase das famosas frases: “senta de perna fechada”, “tira a mão daí”, “isso é feio”. Na grande maioria das vezes não temos a mesma educação sexual que os meninos e temos a masturbação demonizada e muitas vezes nem sequer explicada. Não entendemos essa vontade de nos tocar e somos reprimidas a esconder e ignorar esses ímpetos.

Quando vem a menstruação, de um dia para o outro passamos a ter “um corpo de mulher que pode engravidar”. Muitas meninas são amedrontadas com esse fato antes mesmo de terem consciência de desejo sexual, ou, ainda, da própria existência de sexo em si. A menstruação nos é ensinada como “um saco” e rodeada de medos e vergonha, sempre algo a ser escondido como se fosse sujo. As cólicas ou a TPM são vistas como uma anormalidade, afinal, “Como assim você vai ficar com esse humor instável ~louca~ , com dor se você pode não menstruar?”.

Por conta de “irregularidades”, ciclos menstruais que não são perfeitos como o livro diz, cólica ou TPM, ou ainda o achado de ovários policísticos no ultrassom, começamos a tomar pílula anticoncepcional ainda bem jovens e mantemos essa medicação por anos a fio “controlando” nosso corpo defeituoso. O uso da pílula bloqueia nossa produção hormonal natural e faz com que não tenhamos a oportunidade de sentir nossos ciclos, entender nossa menstruação e nosso corpo. Passamos a adolescência e parte da vida adulta assim. Sem nem questionar aquele comprimido que tomamos todo dia, como se ele fosse essencial para o funcionamento normal do nosso corpo.

Aprendemos que temos que nos poupar sexualmente, ou pelo menos fazer as coisas escondidas, porque ninguém quer uma mulher rodada, portanto devemos ser mais recatadas. Mas ao mesmo tempo é esperado de nós que sejamos “boas de cama” com nossos parceiros. Homens e mulheres aprendem a transar com grande influencia da indústria pornográfica o que atrapalha muito o desenvolvimento sexual ao mostrar um sexo irreal. Aquela menina/mulher que transa as primeiras vezes e não tem orgasmos incríveis com a penetração vaginal como a atriz que ela viu na internet, acha que é o seu corpo que tem algum problema. “Porque que eu não gozo como elas? Porque minha vulva não é como a delas?”. Isso gera, muitas vezes, realização de atividades sexuais não prazerosas para agradar o outro, fingimento de orgasmos e uma grande frustração de não entender porque esse prazer sexual tão vendido na mídia não a pertence.

Quando paramos a pílula para engravidar, após muitos anos bloqueadas, temos ciclos irregulares e nos frustramos quando a gestação que planejamos e queríamos para aquele mês não vem. Somos imediatistas e culpamos esse corpo que não nos obedece.

Então ficamos grávidas através de tratamentos de fertilização, ou espontaneamente em um ambiente de stress, pois não foi tão rápido como queríamos, e ouvimos da sociedade, da família e dos médicos: “Como assim parto normal? Pra que? Pra que sentir dor? A cesariana é tão mais simples”. Embutida nessas falas (que são falsas) está mais uma vez a mensagem que nosso corpo não funciona: não consegue parir (o que ele foi feito para fazer e tem feito desde o surgimento da espécie).

Após o parto vêm mudanças hormonais, emocionais e sociais, uma grande mudança das prioridades das nossas vidas para cuidar dos filhos que são tão dependentes nos primeiros anos. É natural que com essa grande demanda, as outras áreas recebam menos atenção. Então nos vemos em uma situação de uma mulher que já não da conta das coisas como antes e não tem o mesmo pique na cama, por exemplo. Puxa, mas será que essa mudança na libido é principalmente hormonal? Será que dar um comprimido resolve o fato de uma nova mãe estar sem vontade de fazer sexo porque na verdade toda a energia da vida dela está: primeiro em assegurar a sobrevivência da cria e depois em comer e dormir? Está aí mais um defeito desse corpo que não tem mais o mesmo tesão de antes.

O pico de fracasso desse corpo defeituoso (aos olhos da sociedade) é a menopausa. Como se a mulher nessa fase não tivesse mais motivo de ser e devesse ficar de lado, tricotando, pois está “velha” e hoje em dia não valorizamos coisas velhas, particularmente se femininas.

E se…

E se ao invés de vivermos toda uma vida sem entender direito o porquê dos sintomas e particularidades do nosso corpo de mulher, como se tudo tivesse sendo feito para dificultar sua vida, nós nos debruçássemos em escutar, interpretar e entender o funcionamento desse corpo e de seus ciclos? E se a partir de agora você desse um voto de confiança para a natureza, Deus, você mesma (o que você acreditar), para observar sob outro olhar esse invólucro maravilhoso e inteligentíssimo que é o corpo humano?

O estudo do corpo é um caminho incrível para o autoconhecimento. E a forma com a qual você lida com ele, que sempre será seu corpo, faz toda a diferença. Você pode viver entendendo que tudo está errado sempre, que realmente coitada de você que nasceu mulher e vai viver nesse corpo para sempre; ou pode tentar entrar em harmonia, através do conhecimento e do entendimento de como tudo funciona no nosso organismo feminino e, assim, encontrar felicidade e pertencimento.

Dra Amanda Loretti estudou medicina na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, e foi nessa mesma instituição que realizou suas residências médicas em Obstetrícia, Ginecologia e Medicina Fetal. Depois de formada ainda realizou especialização em Ginecologia Endócrina e hoje em dia atua principalmente em obstetrícia humanizada, ginecologia e sexualidade. Atende presencialmente em seu consultório em São Paulo, ou via telemedicina. 

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